15/07/2018

Qual deve ser o papel da Defensoria Pública no combate à corrupção?

15/07/2018

Em artigo publicado no dia 3 de julho na ConJur, o defensor público Marcos Vinicius Manso Lopes Gomes afirma que “a corrupção aparece como um dos maiores obstáculos à consolidação de um Estado Democrático de Direito, sendo a população hipossuficiente a mais afetada pelos atos criminosos praticados por determinados indivíduos, notadamente por agentes públicos”. Sustenta, com base nisso que “a Defensoria Pública, como cláusula pétrea da cidadania, na defesa do Estado Democrático Constitucional, com autonomia, deverá atuar de forma estratégica, coordenada, no âmbito da União, dos estados e do Distrito Federal, inclusive com parcerias com outros órgãos e instituições” elevando “o combate à corrupção como prioridade institucional”.[1]

 

Esse destaque ao combate à corrupção por defensorias públicas já havia surgido por ocasião do envio ao Congresso Nacional do PLC 4850/2016, popularmente conhecido como como “10 Medidas de Combate à Corrupção”. Naquela ocasião, as Defensorias Públicas estaduais de Pernambuco, do Amazonas, do Amapá, as representações da DPU de Santarém/PA e Amazonas e a Defensoria Pública do Município de Picos subscreveram petição online organizada pelo MPF em apoio as propostas legislativas[2].

 

Sobre o destaque conferido à corrupção como o principal dos males que afeta o Brasil, essas tendências parecem desconsiderar as análises feitas por cientistas sociais, teóricos políticos e economistas das manifestações de junho de 2013 e suas consequências até hoje.

 

Além disso, deve-se ressaltar que na história do Brasil o combate à corrupção aparece em vários momentos de crise institucional do país, desde a fundação da República e em todos os golpes militares e institucionais, inclusive no de 1964, quando os militares tomaram o poder pela última vez.

 

Como bem sintetiza a cientista social e antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, “a luta contra a corrupção tem sido deturpada pelo discurso moralizante conservador, que trata o fenômeno por meio de interpretações essencialistas, como o caráter de um povo, uma classe ou um partido”[3].

 

Sem a pretensão de esgotar o tema, uma vez que a perspectiva jurídica é insuficiente para analisá-lo isoladamente, podemos com bastante segurança afirmar que a corrupção é um dos problemas mais visíveis no país. Mas a sua existência e perpetuação parecem estar relacionadas com a distribuição de riquezas de forma profundamente desigual.

 

Aliás, no mesmo artigo antes citado, Rosa Pinheiro-Machado afirma que “corrupção é o esvaziamento da razão pública em nome do ganho privado. É vitória dos laços particularistas e assimétricos sobre a igualdade e o universalismo”, o que corrobora a afirmação de que a corrupção em si é fruto de problemas sociais muito mais profundos, e que mero discurso de combate à corrupção é um recurso simplista de conquista de simpatia.

 

Nesse sentido, veja-se também o artigo de Celso Rocha de Barros publicado em 18 de junho de 2018 no jornal Folha[4] de São Paulo e intitulado “É mais crise do que roubo”. Nesse artigo, o sociólogo é enfático ao afirmar que é falsa a ideia de que o dinheiro acabou porque roubaram.

 

Vale a pena transcrever um trecho do que Celso Rocha de Barros escreveu e que mostra que as crises atravessadas pelo país têm origem em uma série de fatores que não apenas a corrupção:

 

E aí se vê que o discurso “não é crise, é roubo” pode atrapalhar muito o Brasil. O mesmo controle de preço voltou como resultado da greve dos caminhoneiros. Grande parte da população apoiou a greve dos caminhoneiros, porque viu no movimento uma revolta contra os políticos corruptos. Tentar resolver todo e qualquer problema econômico combatendo a corrupção só vai atrasar a saída da crise.

 

É inteiramente compreensível que a opinião pública ache que a corrupção causou a crise. Afinal, tivemos a segunda maior recessão de nossa história nos últimos anos, e, exatamente no mesmo período, a “lava jato” trouxe a público o imenso escândalo do financiamento da política brasileira pelos cartéis de empreiteiras.

 

O brasileiro vê que o dinheiro acabou, vê que os políticos roubaram muito dinheiro, e acha que não há mistério nenhum aí: acabou porque roubaram.

 

Parece óbvio, mas não é, não. A Previdência já vem acumulando problemas há décadas. O gasto público já vem crescendo mais do que o país faz muitos anos. Nossos problemas de produtividade já existem faz tempo, só ficaram meio disfarçados quando o cenário externo foi favorável ao Brasil na década passada. Precisaremos reformar um monte de coisas para colocar isso tudo em ordem.

 

A corrupção apresenta-se, assim, como resultado de desigualdades sociais históricas e da assimetria no exercício dos poderes políticos e econômicos, bem como no desvio finalístico do exercício desses poderes. Ela não é, em si, como sustentou o defensor público em seu artigo a causa dos males brasileiros, mas uma de suas consequências.

 

A partir da compreensão de que o “mal maior” não é a corrupção, mas as desigualdades, há que se ressignificar o papel da Defensoria Pública nesse cenário.

 

Como escrito em tantas obras[5] e consolidado no julgamento da ADI 3.943 pelo STF, a Defensoria Pública é instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado vinculada aos interesses de pessoas vulneráveis.

 

Esse é um ponto que sempre vale a pena destacar: embora originalmente pensada na tutela judicial de pessoas economicamente hipossuficientes, o reconhecimento de que as barreiras de acesso à justiça são mais do que o direito de ingressar em juízo, a Defensoria Público alterou ao longo de sua história a sua função, para consolidar-se como instituição de promoção e tutela de direitos de pessoas vulneráveis, ou seja, pessoas que encontram barreiras sociais e/ou jurídicas de desenvolvimento de suas vidas.

 

Nesse sentido, o papel da Defensoria Pública é o de adoção de medidas judiciais ou extrajudiciais, individuais ou coletivas, que visem à superação de barreiras e impedimentos para o exercício de direitos.

 

Por certo, dentro dessa perspectiva funcional, pode o defensor público ou defensora pública utilizar-se de toda a sorte de argumentos para o cumprimento de sua função, inclusive as barreiras administrativas e os desvios de recursos públicos. Mas essa possibilidade não se confunde com a função prioritária de combate à corrupção.

 

Parece-nos que incluir a defesa da coisa pública e do combate à corrupção como objetivo final e prioritário da Defensoria Pública não está incluída na determinação constitucional de “orientação jurídica, promoção dos direitos humanos e defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados”, que consta do art. 134 da CRFB, e poderia representar prejuízo a execução dessas funções constitucional atribuídas à Instituição, e que representaria, em última análise, a colocação em risco de situações individuais e coletivas de interesses de pessoas vulneráveis em razão do reposicionamento institucional.

 

Vale destacar que conforme pesquisa do IPEA, 95,4% das comarcas brasileiras ou não possuem defensor público ou possuem em número insuficiente[6], o que revela a existência de um longo caminho para a sedimentação do papel da Defensoria Pública como pensado pelo constituinte e para a elevação das garantias de acesso à justiça às pessoas vulneráveis.

 

Diante desse cenário, parece-nos que a melhor forma de a Defensoria Pública contribuir para a construção de uma sociedade justa e igualitária é, nesse momento, atuar como interlocutor de pessoas vulneráveis, promovendo seus interesses e direitos de forma prioritária.