16/02/2021

O sigilo bancário ainda é o modelo de negócio dos bancos suíços

16/02/2021

Nove bilhões de francos distribuídos por centenas de contas na Suíça. Um novo caso de desvio de fundos públicos venezuelanos envolve um em cada oito bancos suíços. Este escândalo demonstra o fracasso do sistema antilavagem de dinheiro implantado pela Suíça, de acordo com vários especialistas.

Outrora um próspero país produtor de petróleo, a Venezuela é hoje um dos países mais pobres da América Latina. De acordo com a pesquisa nacional sobre condições de vida quase toda a população (96%) vive na pobreza.

Enquanto a população sofre, a chamada “boliburguesia” vai muito bem, obrigado. Aqueles próximos ao regime do ex-presidente Hugo Chávez, que morreu em 2013, enriqueceram com o desvio de fundos públicos e estão se oferecendo uma aposentadoria privilegiada no exterior. Para cometer seus crimes, eles passaram em massa pela praça financeira suíça.

Um em cada oito bancos suíços envolvidos

Reveladas pelo jornal Tribune de Genève em meados de janeiro, várias investigações abertas pela polícia de Zurique mostram a extensão dos saques do regime bolivariano. Os investigadores identificaram fluxos suspeitos que totalizam cerca de nove bilhões de francos. De acordo com informações do diário de Genebra, o dinheiro foi espalhado por centenas de contas abertas em cerca de 30 bancos suíços – em suma, um em cada oito bancos suíços está envolvido.

Essas somas colossais, das quais apenas algumas centenas de milhões foram bloqueadas pelos tribunais, foram usadas para comprar uma coleção extravagante de relógios de luxo, vilas, iates e cavalos de corrida, entre outras coisas.

Funcionários venezuelanos de alto escalão foram diretamente corrompidos através de uma conta da Suíça visada pela investigação, incluindo o ex-ministro das finanças Alejandro Andrade. Este último foi condenado a dez anos de prisão nos Estados Unidos, depois de confessar ter recebido quase um bilhão de dólares em subornos.

Dinheiro venezuelano, dinheiro de alto risco

Apesar de sua escala, este novo caso envolvendo bancos suíços não é uma surpresa para os especialistas em crimes econômicos. Mark Pieth, advogado criminal e especialista em questões de corrupção internacional, deplora a situação: “É irritante, mas alguns bancos suíços ainda estão fazendo o que querem. A Suíça continua sendo um paraíso para a lavagem de dinheiro”.

Os bancos deveriam ter sido mais cuidadosos ao lidar com a Venezuela. “Alguns bancos suíços estiveram envolvidos em outros casos de desvio de fundos públicos venezuelanos no passado”, diz Mark Pieth, que também atuou anteriormente como consultor anti-corrupção para a FIFA. Por exemplo, milhões do escândalo de corrupção em torno da empresa petrolífera venezuelana PDVSA tinham sido canalizados através da Confederação Suíça. “Aceitar dinheiro de um estado falido como a Venezuela é uma estupidez profissional. É óbvio que você é cúmplice de um regime corrupto”, diz o professor de direito penal.

“É irritante, mas alguns bancos suíços continuam a fazer o que querem. A Suíça continua sendo um paraíso para a lavagem de dinheiro”. Mark Pieth, professor de direito penal.

Vigilância deficiente

No entanto, os bancos suíços continuam a assumir riscos significativos, diz Mark Pieth. Em sua opinião, isto mostra o fracasso da supervisão bancária. “O centro financeiro suíço é um dos mais fortes do mundo, mas nosso sistema de supervisão é ineficaz. No entanto, teríamos os meios para implementar uma supervisão adequada”, lamenta ele.

O especialista identifica o problema do lado da Finma, o órgão supervisor do setor financeiro. Ele pode avisar os bancos dos riscos que estão correndo, mas a decisão de aceitar ou não um cliente recai sobre o banco, observa ele. “É como pedir aos cassinos que identifiquem os viciados. O trabalho dos banqueiros é ganhar dinheiro”, diz Mark Pieth.

Penalidades débeis

Organizações suíças de assistência e organizações não governamentais (ONGs) também vêm denunciando a chamada “estratégia da zebra” da praça financeira suíça há vários anos. Os bancos não aceitam mais apenas dinheiro limpo de países industrializados ricos, mas continuam sendo uma caixa preta para os países em desenvolvimento, que muitas vezes não têm nenhuma chance de receber informações fiscais nos processos de assistência administrativa.

E as punições não desencorajam em nada a tomada de riscos. A ONG suíça Public Eye acredita que o sistema anti-lavagem de dinheiro não é um dissuasor suficiente. “O Judiciário ainda tem dificuldades para chegar no andar de cima da cadeia da responsabilidade. Na maior parte das vezes os dirigentes saem sem problemas, alegando que nada sabiam sobre isso”, diz Adrià Budry Carbó, uma investigadora para a organização de direitos humanos.

A Public Eye acredita que a Finma deveria ser mais dura e utilizar as ferramentas à sua disposição, tais como a emissão de proibições a banqueiros ou a retirada de licenças bancárias de instituições criminosas. É hora de a justiça se interessar pelo seu caso”, disse Carbó.

Uma lei cheia de buracos

Para a Transparência Internacional, o arsenal legislativo para combater a lavagem de dinheiro não é suficiente. “Muitos bancos não cumprem suas obrigações de diligência e não cumprem seu dever de comunicar suas dúvidas às autoridades”, diz Martin Hilti, o chefe da seção suíça da associação anti-corrupção.

Ele também vê a Lei de Lavagem de Dinheiro como deficiente: “Seu escopo de aplicação é muito limitado. Esta crítica também tem sido expressa pela comunidade internacional através do Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI). Atualmente, a legislação regulamenta apenas as atividades dos intermediários financeiros. Os advogados, por exemplo, não estão sujeitos a isso.

Entretanto, o Parlamento parece não estar disposto a se adaptar às normas internacionais. Como parte da revisão em andamento da Lei de Lavagem de Dinheiro, os representantes eleitos se recusaram a submeter os advogados à legislação. Apesar deste compromisso, a minuta da revisão pode muito bem ser rejeitada na próxima sessão parlamentar. “O governo e o parlamento estão usando a ‘tática do salame’. Eles fazem o mínimo para evitar críticas de outros países, e mesmo esta modesta revisão está sendo contestada”, diz Martin Hilti.

“O setor bancário suíço tem medo de perder uma vantagem competitiva sobre seus concorrentes”. Sergio Rossi, economista.

Um modelo de negócios a ser revisto

“Esta não é a primeira e não será a última vez que os bancos suíços estão no centro das transferências de dinheiro sujo”, lamenta Sergio Rossi, professor de economia da Universidade de Friburgo. Ele observa que a introdução do intercâmbio automático de informações em 2018 não mudou nada. O problema para ele não é a lei em si, mas sua aplicação. “Cabe aos bancos transmitir os casos suspeitos às autoridades, mas estas não o fazem com freqüência por medo de perder clientes ricos”, explica o economista.

“O setor bancário suíço tem medo de perder uma vantagem competitiva sobre seus concorrentes”.

Desde 2016, as instituições bancárias têm reportado 12 a 17 bilhões de ativos suspeitos por ano ao Escritório Suíço de Lavagem de Dinheiro (MROS). “Dos três trilhões de francos depositados em bancos suíços, esta soma é insignificante. O setor bancário mostra assim que está cooperando, mas os casos que rendem mais dinheiro muitas vezes não são relatados”, diz Sergio Rossi.

Virada ecológica

O economista está convencido: “O sigilo bancário é preservado e continua sendo um modelo de negócios”. Embora ele acredite que a nova geração de banqueiros tenha uma ética mais afiada, eles estão sob pressão, e o medo de perder seus bônus ou até mesmo seus empregos os força a assumir riscos. “A indústria bancária suíça tem medo de perder uma vantagem competitiva sobre seus concorrentes”.

Sergio Rossi defende uma mudança radical. Em sua opinião, os bancos suíços deveriam se tornar verdes e realmente se concentrar em finanças sustentáveis. “A rentabilidade do centro financeiro declinaria por alguns anos, mas a longo prazo nós sairíamos por cima”, diz ele.

O combate à lavagem de dinheiro também é uma prioridade para os bancos, dizem os bancos.

A Associação Suíça de Bancos (ASB) não quis comentar este caso específico de desvio de fundos venezuelanos envolvendo bancos suíços. No entanto, ela aponta que existem leis e regulamentos rigorosos contra a lavagem de dinheiro. “Para nosso país, como líder mundial na gestão de ativos internacionais, a luta contra a lavagem de dinheiro é uma prioridade máxima. Portanto, devemos continuar a desenvolver e melhorar nossas medidas defensivas”, diz a ASB em uma resposta escrita.

FONTE: Folha do Litoral