18/02/2022

Por que é preciso que as investigações internas, no âmbito dos programas de compliance, estejam de acordo com as premissas processuais penais?

18/02/2022

Para que possamos encarar os desafios contidos no título deste breve artigo, é preciso situar o leitor nas discussões sobre os programas de compliance e sobre as investigações internas dentro deste âmbito.

Os programas de compliance estão calcados na ideia de “autorregulação regulada” do mundo empresarial e surgem com o objetivo de superar as dificuldades encontradas pelo Estado na realização das suas atividades de prevenção, investigação e repressão de ilícitos empresariais, dada a alta complexidade, especialização e sofisticação das relações travadas neste contexto.

Mas o compliance não cumpre somente uma função pública, já que também busca auxiliar as empresas na criação de uma cultura ética e legal a fim de minimizar os riscos das suas atividades, os quais podem ter graves implicações reputacionais e econômicas. Em outras palavras, estes programas de cumprimento buscam impedir a prática de ilícitos (civis, administrativos e penais) dentro da empresa, por meio dela ou contra ela, por terceiros.

Por isso, o compliance é um produto híbrido, público-privado, criado na intersecção entre o Estado e o mundo empresarial [1].

É por isso também que se fala em “autorregulação regulada”, já que a autorregulação das empresas é também regulada pelo Estado.

É comum que os programas de compliance sejam elaborados com base no modelo de três colunas criado por Marc Engelhart [2], o qual compreende: 1. formulação; 2. implementação; e 3. consolidação e aperfeiçoamento.

Numa apertada síntese, a formulação dos programas de cumprimento deve basear-se no trinômio detectar, definir e estruturar: identificar e mapear os riscos, adotar códigos de ética ou de conduta, criar canais de denúncia para identificar condutas potencialmente ilícitas ou antiéticas e definir as competências dos agentes responsáveis pelo compliance

A coluna da implementação deve assegurar a comunicação, promoção e organização dos programas a todos os administradores e funcionários, garantindo o conhecimento dos códigos e dos procedimentos em conformidade com os programas.

Por último, a consolidação e o aperfeiçoamento devem prever mecanismos de reação a práticas ilícitas, incluindo, principalmente, procedimentos de investigação interna e de sancionamento. O aperfeiçoamento segue-se ao cumprimento, revisão e atualização das etapas anteriores.

Veja-se que as três colunas indicam normas gerais e abstratas, já que não existem programas prontos a serem aplicados a todos os tipos de empresas. Por isso diz-se que devem ser feitos sob medida (tailor made) e levando em consideração as características e especificidades de cada empresa, principalmente o ramo das atividades e o modelo organizacional (complexidade e especialização) [3].

Como visto, as investigações internas estão inseridas na frente da consolidação dos programas de compliance, a qual inclui procedimentos de averiguação de potenciais ilícitos. Porém, trata-se de uma faculdade, não de uma obrigação, sendo que a decisão sobre a promoção (ou não) de uma investigação interna recai, normalmente, sobre os administradores da sociedade, podendo ser delegada ao departamento responsável pelo compliance [4].

Os procedimentos investigativos são destinados a coletar indícios – que podem ser documentos (físicos ou digitais), gravações de áudio e vídeo, entrevistas com pessoas, exames técnicos –, com o objetivo de apurar fatos potencialmente ilícitos que cheguem ao conhecimento das empresas pelo canal de denúncias, pelos procedimentos habituais de supervisão, pela mídia, pelas autoridades estatais etc.

Findas as diligências investigativas, é elaborado e apresentado um relatório à pessoa responsável dentro do modelo organizacional, no qual devem constar as conclusões da investigação. Se constatada a prática de condutas ilícitas ou antiéticas, os desdobramentos ficam subordinados aos interesses da empresa, sejam eles de ordem reputacional, econômica, social, ambiental etc., podendo ensejar: 1. sanções internas (advertência, suspensão ou demissão); 2. envio dos documentos às autoridades estatais para a instauração de/incorporação em investigação ou processo oficial (a fim de obter, inclusive, benefícios [5]); ou, 3. arquivamento para posterior defesa em procedimento sancionatório, inclusive criminal, que venha a ser instaurado [6].

Contudo, considerando se tratar de investigação conduzida por particulares e cujos fatos podem estar relacionados a uma investigação estatal ou a um processo criminal em curso ou iminente, surgem muitas e legítimas dúvidas quanto à idoneidade dos indícios colhidos e possível admissão e valoração num processo penal e, também, quanto aos eventuais excessos cometidos pelas empresas em desfavor dos direitos e garantias de seus funcionários e demais envolvidos [7].

Essas dúvidas poderiam ser dirimidas com uma regulamentação clara e específica sobre o tema, mas, no Brasil, não há regulação capaz de indicar como devem ser conduzidas as investigações internas.

Recentemente, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil editou o Provimento 188/2018, o qual trata da “investigação defensiva” e que possui paralelos com as investigações internas, podendo servir de referência a estas últimas na ausência de regras específicas. 

O Provimento dispõe, no seu art. 1º, que: “Compreende-se por investigação defensiva o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte” [8].

Para além disso, o Projeto do Novo Código de Processo Penal (Projeto de Lei 156/2009), ainda em discussão no Poder Legislativo, na sua versão mais recente, prevê que: “Art. 13. É facultado ao investigado, por meio de seu advogado, de defensor público ou de outros mandatários com poderes expressos, tomar a iniciativa de identificar fontes de prova em favor de sua defesa, podendo inclusive entrevistar pessoas”. 

Veja-se, portanto, que há grande e crescente preocupação com a regulamentação das investigações conduzidas por particulares, em especial por advogados, já que se trata de uma lacuna no ordenamento jurídico brasileiro e um tema há muito tratado em ordenamentos estrangeiros, a exemplo da Itália e dos Estados Unidos.

Fato é que as corporações empresariais não têm a obrigação de investigar – ficando essa obrigação a cargo do poder público –, mas caso não o façam, colocam em questão a eficácia dos seus programas de compliance e aumentam os riscos de prejuízos reputacionais e econômicos (além, claro, de perderem eventuais benefícios e de serem sancionadas em procedimento oficial).

Mas, para que os resultados obtidos com as investigações internas sejam aceitos numa eventual investigação criminal ou ação penal, é preciso que as premissas processuais penais sejam respeitadas, principalmente aquelas relativas aos direitos e garantias dos investigados.

Isso porque as investigações internas não necessariamente se limitam a isentar as empresas de processos contra si instaurados, mas podem também apontar responsáveis pelos fatos investigados, sejam eles funcionários e/ou terceiros. Para isso devem, necessariamente, respeitar o direito à não autoincriminação, ao contraditório e ampla defesa, à presunção de inocência e à privacidade [9] [10].

De forma exemplificativa, não se pode admitir numa investigação interna a obtenção de “confissões” por meio de coação ou tortura; a devassa em documentos, e-mails ou conversas particulares dos funcionários, ainda que armazenados em computadores ou celulares fornecidos pela empresa [11]; eventuais suspeitos devem ser tratados como inocentes, sem a divulgação do nome e perfil aos outros funcionários ou à imprensa; deve-se oportunizar aos entrevistados a presença de um advogado particular; dentre outras cautelas [12].

Conclui-se, portanto, que as investigações internas são mecanismos importantes de autorregulação das empresas, pois permitem que eventuais ilícitos sejam por elas detectados e apurados visando o melhoramento da cultura de ética e legalidade, mas devem respeitar e observar as premissas processuais penais, aí sim reguladas pelo Estado.

REFERÊNCIAS

[1] RODRIGUES, Anabela Miranda. Direito penal econômico: uma política criminal na era compliance. Coimbra: Almedina, 2019, p. 56-57.

[2] Jurista alemão e professor da Goethe-Universität Frankfurt am Main. Para uma consulta mais detalhada do modelo em língua portuguesa: VERÍSSIMO, Carla. Compliance: incentivo à adoção de medidas anticorrupção. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 276 e ss.

[3] RODRIGUES, p. 59.

[4] JANUÁRIO, Túlio Felipe Xavier. Cadeia de custódia da prova e investigações internas empresariais: possibilidades, exigibilidade e consequências processuais penais de sua violação. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 1453-1510, mai.-ago. 2021, p. 1468.

[5] Como é o caso do previsto no art. 7º da Lei nº 12.846/13: “Serão levados em consideração na aplicação das sanções: (…) VII – a cooperação da pessoa jurídica para a apuração das infrações; VIII – a existência de mecanismos e procedimentos internos de integridade, auditoria e incentivo à denúncia de irregularidades e a aplicação efetiva de códigos de ética e de conduta no âmbito da pessoa jurídica”. É também o caso do art. 86, inciso IV, da Lei nº 12.529/11: “Art. 86. O Cade, por intermédio da Superintendência-Geral, poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de 1 (um) a 2/3 (dois terços) da penalidade aplicável, nos termos deste artigo, com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: (…) IV – a empresa confesse sua participação no ilícito e coopere plena e permanentemente com as investigações e o processo administrativo, comparecendo, sob suas expensas, sempre que solicitada, a todos os atos processuais, até seu encerramento”.

[6] JANUÁRIO, p. 1471.

[7] JANUÁRIO, p. 1457.

[8] Provimento 188/2018 do Conselho Federal da OAB. Disponível em: <https://www.oab.org.br/leisnormas/legislacao/provimentos/188-2018>. 

[9] JANUÁRIO, p. 1474.

[10] Essa é uma previsão, inclusive, constante no art. 5º do Provimento 188/2018 do CFOAB: “Art. 5º Durante a realização da investigação, o advogado deve preservar o sigilo das informações colhidas, a dignidade, privacidade, intimidade e demais direitos e garantias individuais das pessoas envolvidas”.

[11] Neste ponto, é importante destacar que a 6ª Turma do STJ já decidiu que a monitoração e a recolha de dados de ferramentas corporativas (e-mails, chats, servidor interno) sem autorização judicial é lícita, já que são destinadas ao trabalho, não havendo que se falar em violação da privacidade. A decisão pode ser consultada em: <https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/22092020-Mensagem-para-e-mail-corporativo-pode-ser-usada-como-prova-sem-autorizacao-judicial–decide-Sexta-Turma.aspx#:~:text=%E2%80%8B%E2%80%8B%E2%80%8B%E2%80%8BPara,trabalho%2C%20de%20propriedade%20da%20empresa>.

[12] CANESTRARO, Anna Carolina; JANUÁRIO, Túlio Felipe Xavier. Investigação defensiva corporativa: um estudo do Provimento 188/2018 e de sua eventual aplicação para as investigações internas de pessoas jurídicas. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 283-328, jan.-abr. 2020, p. 315 e ss.

Autor: Mariani Bortolotti Fiumari

Professora da graduação em Direito no Centro Universitário Filadélfia (UniFil Londrina). Professora convidada da pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania (IDCC Londrina). Mestra em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Advogada criminalista. E-mail: marianibfiumari@gmail.com.